Só
Lula, neste contexto, seria capaz de salvar a democracia brasileira.
Para alguns liberais que se viram obrigado
a manter a polarização política como uma forma de sobrevivência política, não
deve ter sido nada fácil. Por mais que tentasse explicar seus posicionamentos,
a disputa no Brasil se travava entre democracia e autoritarismo e isto, era
cada vez mais evidente. De um lado, uma ampla aliança que ia das mais
importantes personalidades do centro-direita (o apoio de Fernando Henrique
Cardoso e o lugar de Alckmin como vice são dois símbolos desse entendimento)
até todas as matizes da esquerda. Do outro, o campo neofascista em torno do
qual se agregaram múltiplos interesses, capitaneado pelo clã Bolsonaro.
O que aconteceu a seguir às eleições provou
qual era o compromisso regras democráticas por parte do candidato derrotado.
Após dois dias de silêncio, Bolsonaro falou. Sem admitir a derrota, sem saudar
o Presidente eleito, culpando o processo eleitoral pelo “sentimento de
injustiça” que justificaria o bloqueio de estradas, atacando a esquerda com
mentiras sobre os seus “métodos” e repetindo o mote integralista: “Deus, Pátria
e Família”.
O Clima polarizado da Guerra Fria não
existe mais e Por várias razões, internas e externas não existe clima, no
sentido clássico, para deflagrar um golpe de estado. Na história
latino-americana, estes contaram sempre com o apoio direto dos Estados Unidos.
Apesar do investimento de Trump no bolsonarismo, Biden foi um dos primeiros a
reconhecer Lula, logo no domingo, aliás, como dezenas de outros Chefes de
Estado. Os bolsonaristas com mandatos também não querem ouvir falar de fraude.
Pragmáticos, não desejam ferir a legitimidade dos seus futuros cargos e já
estão se preparando para nova fase. Quem ficou com a triste tarefa de admitir a
derrota e criar condições para que haja uma transição política como manda a constituição,
foi o ministro da Casa Civil.
O fato que tem chamado nossa atenção e que
nos preocupa mais neste processo pós-eleição, são os protestos que tem
bloqueado as estradas, eles ao mesmo tempo em que representa um sinal de
isolamento momentâneo do “bolsonarismo de rua” antecipa o que poderá vir a
acontecer nos próximos anos.
Não é de hoje que a imprensa vem
denunciando como a Polícia Rodoviária Federal foi cooptada pelo bolsonarismo e
como seu atual diretor, Silvinei Vasques, é protegido em investigações
internas. No dia da eleição, a PRF instalou barreiras nas estradas, sobretudo
no Nordeste, para dificultar o acesso dos eleitores à urna. Outro fato importante
foi à divulgação pela revista Piauí que o bloqueio de domingo partiu de
uma ordem expressa do próprio diretor da PRF. Depois, com o anúncio da vitória
de Lula na noite de domingo, caminhoneiros bolsonaristas começaram a obstruir
algumas rodovias pelo país, contando com a leniência – e, às vezes, o apoio –
de agentes da PRF.
A atitude "compreensiva” da polícia
perante as ilegalidades de bolsonaristas é um indicador de como esta pode ser
um desestabilizador da ordem democrática e contrasta com a violência utilizada
noutros contextos, nomeadamente na repressão de movimentos sociais dos sem
terra, dos sem teto ou de indígenas. Por outro lado, os relatos sobre a
suspensão, no dia das eleições, de transportes gratuitos em determinados
Estados, para dificultar o voto dos mais pobres, é também sinal de como o
aparelho de Estado poderá ser mobilizado no boicote ao futuro governo federal.
Só no quadro mental da extrema-direita é
que Lula pode ser apresentado como alguém da “esquerda radical”. Além do arco
de alianças de Lula nesta campanha incluir figuras referenciais da direita
brasileira, cuja presença foi reforçada pela participação ativa da liberal
Simone Tebet na campanha, as próprias políticas dos governos Lula nunca foram
do ponto de vista económico, nada que qualquer centrista psdbista não
subscrevesse.
Não quero aqui desvalorizar a importância que
elas tiveram para as medidas de inclusão social, de promoção da educação, de
combate à fome e à pobreza dos mandatos de Lula (que retiraram mais de 20
milhões de pessoas da pobreza). Nem para contestar que o país esteja dividido,
fato que os resultados eleitorais demonstram sem contestação. Mas só num
imaginário colonizado pela extrema-direita é que Lula significa o “extremo”
político que seria o reverso da moeda de Bolsonaro.
Quem pensa com base nestas narrativas perde
facilmente o fio democrático da discussão. É o que sucede a tantas figuras da
direita, que hesitam em reconhecer o óbvio - Lula era a única opção democrática
neste segundo turno das eleições capaz
de derrotar o fascismo.
Essa vitória se deu única e exclusivamente pela
capacidade política de agregar pessoas e ideias que este retirante tem. Foi sem
dúvida, à figura de Lula e à circunstância de ser um democrata, mas também ao
fato de não ser um liberal que criou as condições necessárias para derrotar o
bolsonarismo. O combate democrático não se travou, pois, pela mera preservação
da formalidade institucional. Disse Lula, de forma clara, no seu discurso de
vitória: “O povo brasileiro quer viver bem, comer bem, morar bem. Quer um bom
emprego, um salário reajustado sempre acima da inflação, quer ter saúde e
educação públicas de qualidade. Quer liberdade religiosa. Quer livros em vez de
armas. Quer ir ao teatro, ver cinema, ter acesso a todos os bens culturais,
porque a cultura alimenta nossa alma. (...) É assim que eu entendo a
democracia. Não apenas como uma palavra bonita inscrita na Lei, mas como algo
palpável, que sentimos na pele, e que podemos construir no dia a dia.”.
Temos que estar vigilantes. Temos que
a partir de janeiro, impedir qualquer tipo de sabotagem ao novo governo ou
desestabilização a partir das instituições onde a extrema-direita mantém
influência. Outro ponto são os boicotes por parte da maioria no Senado e no
Congresso. Mas, como escreveu o sociólogo Ruy Braga, que dedicou tanta da sua
obra a uma análise crítica das contradições do lulismo, só Lula teria sido
capaz, neste contexto, de salvar a democracia brasileira. E isso é uma dívida
enorme que com ele têm todos os democratas do mundo.