quinta-feira, 3 de novembro de 2022

ARTIGO - A democracia tem uma dívida impagável com Lula. (Padre Carlos)

 

Só Lula, neste contexto, seria capaz de salvar a democracia brasileira.



Para alguns liberais que se viram obrigado a manter a polarização política como uma forma de sobrevivência política, não deve ter sido nada fácil. Por mais que tentasse explicar seus posicionamentos, a disputa no Brasil se travava entre democracia e autoritarismo e isto, era cada vez mais evidente. De um lado, uma ampla aliança que ia das mais importantes personalidades do centro-direita (o apoio de Fernando Henrique Cardoso e o lugar de Alckmin como vice são dois símbolos desse entendimento) até todas as matizes da esquerda. Do outro, o campo neofascista em torno do qual se agregaram múltiplos interesses, capitaneado pelo clã Bolsonaro.

O que aconteceu a seguir às eleições provou qual era o compromisso regras democráticas por parte do candidato derrotado. Após dois dias de silêncio, Bolsonaro falou. Sem admitir a derrota, sem saudar o Presidente eleito, culpando o processo eleitoral pelo “sentimento de injustiça” que justificaria o bloqueio de estradas, atacando a esquerda com mentiras sobre os seus “métodos” e repetindo o mote integralista: “Deus, Pátria e Família”.

O Clima polarizado da Guerra Fria não existe mais e Por várias razões, internas e externas não existe clima, no sentido clássico, para deflagrar um golpe de estado. Na história latino-americana, estes contaram sempre com o apoio direto dos Estados Unidos. Apesar do investimento de Trump no bolsonarismo, Biden foi um dos primeiros a reconhecer Lula, logo no domingo, aliás, como dezenas de outros Chefes de Estado. Os bolsonaristas com mandatos também não querem ouvir falar de fraude. Pragmáticos, não desejam ferir a legitimidade dos seus futuros cargos e já estão se preparando para nova fase. Quem ficou com a triste tarefa de admitir a derrota e criar condições para que haja uma transição política como manda a constituição, foi o ministro da Casa Civil.

O fato que tem chamado nossa atenção e que nos preocupa mais neste processo pós-eleição, são os protestos que tem bloqueado as estradas, eles ao mesmo tempo em que representa um sinal de isolamento momentâneo do “bolsonarismo de rua” antecipa o que poderá vir a acontecer nos próximos anos.

Não é de hoje que a imprensa vem denunciando como a Polícia Rodoviária Federal foi cooptada pelo bolsonarismo e como seu atual diretor, Silvinei Vasques, é protegido em investigações internas. No dia da eleição, a PRF instalou barreiras nas estradas, sobretudo no Nordeste, para dificultar o acesso dos eleitores à urna. Outro fato importante foi à divulgação pela revista Piauí  que o bloqueio de domingo partiu de uma ordem expressa do próprio diretor da PRF. Depois, com o anúncio da vitória de Lula na noite de domingo, caminhoneiros bolsonaristas começaram a obstruir algumas rodovias pelo país, contando com a leniência – e, às vezes, o apoio – de agentes da PRF.

A atitude "compreensiva” da polícia perante as ilegalidades de bolsonaristas é um indicador de como esta pode ser um desestabilizador da ordem democrática e contrasta com a violência utilizada noutros contextos, nomeadamente na repressão de movimentos sociais dos sem terra, dos sem teto ou de indígenas. Por outro lado, os relatos sobre a suspensão, no dia das eleições, de transportes gratuitos em determinados Estados, para dificultar o voto dos mais pobres, é também sinal de como o aparelho de Estado poderá ser mobilizado no boicote ao futuro governo federal.

Só no quadro mental da extrema-direita é que Lula pode ser apresentado como alguém da “esquerda radical”. Além do arco de alianças de Lula nesta campanha incluir figuras referenciais da direita brasileira, cuja presença foi reforçada pela participação ativa da liberal Simone Tebet na campanha, as próprias políticas dos governos Lula nunca foram do ponto de vista económico, nada que qualquer centrista psdbista não subscrevesse.

Não quero aqui desvalorizar a importância que elas tiveram para as medidas de inclusão social, de promoção da educação, de combate à fome e à pobreza dos mandatos de Lula (que retiraram mais de 20 milhões de pessoas da pobreza). Nem para contestar que o país esteja dividido, fato que os resultados eleitorais demonstram sem contestação. Mas só num imaginário colonizado pela extrema-direita é que Lula significa o “extremo” político que seria o reverso da moeda de Bolsonaro.

Quem pensa com base nestas narrativas perde facilmente o fio democrático da discussão. É o que sucede a tantas figuras da direita, que hesitam em reconhecer o óbvio - Lula era a única opção democrática neste segundo turno das eleições  capaz de derrotar o fascismo.

Essa vitória se deu única e exclusivamente pela capacidade política de agregar pessoas e ideias que este retirante tem. Foi sem dúvida, à figura de Lula e à circunstância de ser um democrata, mas também ao fato de não ser um liberal que criou as condições necessárias para derrotar o bolsonarismo. O combate democrático não se travou, pois, pela mera preservação da formalidade institucional. Disse Lula, de forma clara, no seu discurso de vitória: “O povo brasileiro quer viver bem, comer bem, morar bem. Quer um bom emprego, um salário reajustado sempre acima da inflação, quer ter saúde e educação públicas de qualidade. Quer liberdade religiosa. Quer livros em vez de armas. Quer ir ao teatro, ver cinema, ter acesso a todos os bens culturais, porque a cultura alimenta nossa alma. (...) É assim que eu entendo a democracia. Não apenas como uma palavra bonita inscrita na Lei, mas como algo palpável, que sentimos na pele, e que podemos construir no dia a dia.”.

Temos que estar vigilantes. Temos que a partir de janeiro, impedir qualquer tipo de sabotagem ao novo governo ou desestabilização a partir das instituições onde a extrema-direita mantém influência. Outro ponto são os boicotes por parte da maioria no Senado e no Congresso. Mas, como escreveu o sociólogo Ruy Braga, que dedicou tanta da sua obra a uma análise crítica das contradições do lulismo, só Lula teria sido capaz, neste contexto, de salvar a democracia brasileira. E isso é uma dívida enorme que com ele têm todos os democratas do mundo.

 

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