Uma Janela para o Passado, um Presente para o Futuro
A infância é uma fase da vida que nos marca
profundamente. É nela que vivemos as primeiras experiências, aprendemos os
valores, formamos a personalidade e construímos as memórias que nos
acompanharão pelo resto dos nossos dias. Por isso, documentar a nossa infância
é uma forma de preservar a nossa história, a nossa identidade e o nosso legado.
É também uma forma de compartilhar com as novas gerações os momentos lindos que
nos fizeram ser quem somos hoje.
Neste artigo, vou contar um pouco da minha
infância e de como cresci em um bairro de Salvador que na década de sessenta
era um lugar cheio de aventuras e descobertas. A história começa com meu pai,
que veio do interior para tentar a sorte na cidade, ao conhecer aquela noviça no
Instituto dos Cegos se apaixona. Eles se casaram e não tinham muitos recursos.
Mas tinham fé e esperança. Eles contaram com a ajuda das irmãs mercedárias, que
eram religiosas que cuidavam de um colégio na Pituba, um bairro que na época
era um balneário, onde as famílias ricas passavam as férias, mas logo se
transformou em um polo de desenvolvimento e progresso. As irmãs conseguiram um trabalho e um lugar para morar. Eles
ficaram responsáveis por tomar conta de uma casa de veraneio de uma família
rica, a família Machado, em troca da moradia nas dependências do caseiro. Foi
lá que eles me deram à luz e me apresentaram à minha irmã mais velha, Tereza.
Ela foi a minha primeira companheira de brincadeiras e aventuras. Ela foi a
minha primeira amiga.
Essa casa onde vivíamos ficava logo em
frente à residência do Dr. Gustavo, um médico renomado, e sua esposa Dona
Iolanda. Era uma casa linda, que parecia um sonho. Tinha um viveiro com
pássaros coloridos, um galinheiro com ovos frescos, uma piscina azul e
cristalina e um jardim maravilhoso, cheio de flores e frutas. Foi o Dr. Gustavo
que me trouxe ao mundo, com suas mãos habilidosas e seu coração bondoso. Ele
fez o parto da minha mãe em nossa própria casa, sem cobrar nada. Assim, nasci
na Pituba, de fato e de direito.
Mas não vou me alongar sobre à casa do Dr.
Gustavo. Ela era grande demais para um casal sem filhos, que vivia viajando.
Por isso, ele resolveu vendê-la para um empresário rico e poderoso, o Sr.
Jaupery Meireles, dono da COMABA, a Companhia de Máquinas da Bahia. Foi aí que
tudo mudou em nossas vidas.
A chegada dos novos moradores daquela casa
foi uma alegria para nós. Era uma família muito acolhedora, os Meireles. Dona
Jandira, esposa de Sr. Jaupery, tratava a gente com o mesmo respeito, sem
nenhum preconceito ou algo que nos fizesse sentir excluídos do convívio deles.
Como tinham oito filhos, acredito que um a mais ou a menos não faria diferença.
Alguns deles já eram grandes, mas não se importavam de brincar com a gente.
Outros eram pequenos, mas não tinham medo de se aventurar. Os Meireles eram uma
família animada e generosa. No entanto, eles não eram os únicos amigos que
tínhamos naquela época.
Naquela época, as famílias eram numerosas,
com uma média de seis a oito filhos. Quem não se lembra do Senhor Espinheira,
Dona Naná, Sr. Filinho e seu Waldomiro? Eles eram pais de verdadeiras
multidões, que enchiam as ruas de vida e alegria. Assim, naquela época, uma
família era um mosaico de cores e sabores, onde crianças e jovens conviviam e
se respeitavam no mesmo ambiente familiar.
Um dos dias mais felizes da minha infância
foi um domingo, na segunda metade da década de sessenta. Foi o dia do grande
piquenique, que reuniu todos os meninos e meninas da Pituba. Acordamos cedo
naquele dia, cheios de expectativa e animação. Cada um levou o seu lanche e o
seu almoço, feitos com carinho pelas nossas mães.
Jope, o filho mais velho do Sr. Jaupery
Meireles, nos levou de carro até um certo trecho. Depois, seguimos a pé,
atravessando o rio que ficava no fundo da fazendinha do Bahia. Passamos entre
as escavadeiras e os tratores que construíam o conjunto do STIEP, um símbolo do
progresso da cidade. Chegamos a uma nascente onde a água era limpa e
refrescante. Lá, nos divertimos muito, tomando banho, almoçando e brincando.
Na volta, viemos pela Avenida Otávio Mangabeira
e vimos às máquinas trabalhando onde seria o Jardim dos Namorados, um lugar
romântico e bonito. Foi um dia inesquecível, que guardo na memória com carinho
e saudade.
Naquela família, o amor não conhecia
fronteiras nem barreiras. O filho mais velho do Sr. Jaupery Meireles se
apaixonou por uma bela descendente de árabes, que tinha os olhos cor de mel e
os cabelos negros como a noite. A filha mais velha, Jacira, se encantou por um
judeu, que havia sobrevivido aos horrores da guerra entre seu povo e o dela. Os
Meireles acolheram os dois namorados com carinho e respeito, sem se importar
com as diferenças culturais ou religiosas.
No entanto, nem todos eram tão tolerantes
assim. A família de Raquel, uma dentista que morreu tragicamente em um
acidente, e a família de Joel, que era judia ortodoxa, não se davam bem. Eles
evitavam qualquer contato ou aproximação e olhavam com desconfiança e desprezo
para o casal misto. Era uma situação delicada e tensa, que refletia o conflito
complexo e sangrento que acontecia no Oriente Médio entre árabes e judeus.
Apesar das tensões que permeavam aquela
situação, a família Meireles permaneceu firme em seus princípios de amor e
respeito. Eles acreditavam na importância de unir as pessoas, de valorizar as
diferenças e de promover a harmonia entre os indivíduos. Essa postura deixou
uma marca profunda em minha vida e me ensinou valiosas lições sobre convivência
e compreensão.
A família Meireles não apenas abriu as
portas de sua casa para nós, mas também nos acolheu em seus corações. Em suas
casas, encontrei não apenas abrigo, mas também amor, compreensão e apoio
incondicionais. Estiveram presentes nos momentos de alegria e nos desafios da
minha infância, oferecendo seu ombro amigo e palavras de encorajamento.
Ao conviver com os Meireles, aprendi o
verdadeiro significado da união e da solidariedade. Mesmo diante das diferenças
culturais e financeiras que existiam entre nós, eles mostraram que o respeito e
a compreensão podem superar qualquer obstáculo. Em seu convívio, aprendi a
valorizar e celebrar a diversidade, entendendo que ela enriquece nossa
existência.
Cada membro da família Meireles deixou uma
marca indelével em meu coração. Do Sr. Jaupery, com sua sabedoria e bondade,
Dona Jandira, com sua doçura e ternura, Jacira, Jusara, Jurinha e Juranda, que
foram como irmãos mais velhos. Juta era contemporâneo, mas os mais próximos
foram Gordinho e Bicudo, meus melhores amigos, pelos quais sou imensamente
grato por cada momento compartilhado.
Hoje, olho para trás e percebo que a
família Meireles não foi apenas uma referência na minha infância, mas uma
bênção. Foram eles que me ensinaram a importância de construir laços
verdadeiros, de estender a mão ao próximo e de amar sem fronteiras. Sou
eternamente grato por tê-los tido como minha família.
Preservar a memória da infância e das
pessoas que marcaram nossa vida é fundamental para manter viva a nossa
história, identidade e legado. Ao documentarmos essas experiências, estamos não
apenas resgatando nossas próprias memórias, mas também compartilhando com as
novas gerações os momentos lindos que nos fizeram ser quem somos hoje.
Assim, convido a todos a refletirem sobre a
importância de preservar e compartilhar suas memórias de infância. Seja por
meio de álbuns de fotos, diários, histórias contadas em família ou outras
formas de registro, cada um de nós tem uma contribuição valiosa para fazer. Ao
fazê-lo, estaremos contribuindo para a construção de um mundo mais humano,
empático e consciente da importância de nossa história e identidade.
Portanto, que possamos todos valorizar e
documentar nossas infâncias, celebrando os momentos lindos que nos fizeram ser
quem somos hoje. Que possamos transmitir esse legado às futuras gerações,
compartilhando nossas memórias, nossos valores e nossas experiências, para que
a infância seja sempre uma fase marcante e significativa na vida de cada
indivíduo.