A voz do ódio
ouve-se bem.
Com a perda de mobilização e organização política dos movimentos
sociais, presenciamos de forma inerte o avanço não só da destruição da estrutura
do estado brasileiro, mas uma coordenada tentativa de anular com as conquista
que o povo brasileiro acumulou ao longo do século XX sobre os direitos humanos.
Entre silêncios e omissões, tomamos conhecimento através
da imprensa sobre a forma como o presidente Jair Bolsonaro (sem partido)
exaltou os cinco presidentes militares que o Brasil teve de 1964 a 1985 e
classificou a ditadura militar, período marcado por violações à democracia e
aos direitos humanos, como um regime um pouco
diferente do que temos hoje. Não podemos ouvir as vozes das pessoas que foram
mortas e torturadas pelo regime que o presidente chama de “pouco diferente”.
Confesso os senhores que naquela hora me veio à mente as palavras de Martin
Luther King e pensei: não são as palavras de Bolsonaro que tenho medo, mas o
silêncio da imprensa brasileira e das elites que demostraram desprezo ao pobre
e todos aqueles que de uma forma ou outra possa ameaçar seus privilégios.
Estas pessoas, vem se aproveitando do silêncios de quem deveria defender o estado de direito, estas figuras que mais parecem que saíram
do armário da história, ainda com cheiro de naftalina, aproveita para mobilizar
o ódio. A voz do ódio ouve-se bem. E há quem não perceba a ameaça que isso
significa, porque não conhece bem o que é viver com o medo.
Sempre estará lá, o medo daquelas botas, sabendo que
ninguém entenderá as marcas – a dor, se não o
dissermos. Sempre lá, as razões para ter medo. Sempre posta em causa, à
primeira liberdade de expressão – a da expressão política.
Todas as pessoas sabem o que é ter medo, mas não o que é
viver com medo. Um medo permanente, tatuado na alma de muitos companheiros, o
medo de Frei Tito.
Sempre, na vida, procurei – em conjunto com quem militava
a partilha deste medo que persiste – ajudei a construir segurança. Leis que não
nos agridam, práticas que não desviem os olhares. Construímos segurança que até
pouco tempo coexista com o medo que sempre esteve lá. E construir calor e
denunciei nos meus mais de quarenta anos de militância o medo que é frio.
A natureza ensina o homem a ser democrático, digo isto,
porque foi justamente em plena pandemia, que todas as pessoas passaram a
convivem com o medo. Por entre tantas perdas de tantas pessoas e por entre
tanto sofrimento, ainda que diferenciado por todas as desigualdades, é a primeira
vez que sinto que as elites e o povo, de forma real, democratizaram a convivência
com o medo. Mas é só um. Para pessoas
que conheço e respeito suas escolhas, outros medos persistem para elas – e se
agravam.
Desde logo, continua o medo de dizer.
É por isso ainda mais importante a visibilidade a outros
níveis, como nos espaços de opinião que estão longe de refletir a diversidade de
experiências que precisamos conhecer. Seja no que diz respeito às vozes de
mulheres, de pessoas LGBT ou de minorias étnico-raciais. Até porque são pessoas
que tem muito mais a dizer, por existir entre elas toda uma herança de
silêncios.
Mas há também um medo que tem chamado minha atenção e tem
se agrava. É que existem um silêncio e uma omissão as agressões ao estado de
direito. Presenciamos nas mais altas cortes, o
uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar o
inimigo. No fundo, trata-se, de um uso indevido do Direito – pois,
supostamente, este tem como função restabelecer a paz e não operar como
instrumento de agressão – que, assim, é utilizado para realizar objetivos
exatamente contrários à sua essência.
É sob o
silêncio cúmplice dos decentes que alguns dos maiores crimes acabam sendo
perpetrados. Aproveitando esta
conjuntura, esses silêncios tem dado cada
vez mais vozes estas forças para
mobilizar o discurso de ódio. A voz do ódio ouve-se bem. E há quem não perceba
a ameaça que isso significa, porque não conhece bem o que é viver com o medo.
Podemos dizer que – na política e na direita, estas forças do mal, têm nome e
endereço e mesmo diante destes crimes – encontramos quem relativize,
justifique, pondere, calcule. Há quem confie num sistema que, afinal, nunca deu
segurança a muitas pessoas. E há quem não se lembre de ouvir e fazer ouvir as
vozes de quem sempre soube e tem marcado na carne, que há razões para o medo.
Gostaria de ouvir e ler mais pessoas que não têm mais
medo de denunciar o discurso do ódio. Sim,
chegou a hora de dar voz a quem sabe tratar o medo por tu. E ter certeza que
não estaremos sozinhos nesta luta e assim podermos dizer nós.