sábado, 14 de dezembro de 2019

ARTIGO - Nostalgia de um padre sem ministério (Padre Carlos)


Nostalgia de um padre sem ministério



Não. Não vou falar da falta que faz o Ministério Sacerdotal na minha vida. Não vou falar das amizades que eu achava que eram minhas e não do pároco. Não vou falar da dificuldade que é reconstruir a vida aqui fora depois de dedicar boa parte da sua vida a instituição. Também não vou falar do preconceito que os próprios leigos têm com os padres que deixaram o ministério. Não vou falar em nada disto porque as crônicas estão cheias destas constatações, os comentários a respeito destes assuntos proliferam, as análises sobrepõem-se e resta aguardar que as mudanças propostas por Francisco se confirmem e esperar que a realidade das coisas nos surpreenda.
Hoje vou falar do sentimento da perda que registei com particular evidência. A exclusão do clero é evidente agora, você depois de alguns anos percebe que aqueles camaradas lhe esqueceram e você não faz mais parte nem do passado delas. Quantos anos morei com aquelas pessoas, dividir o espaço do quarto, da sala, do refeitório e hoje você constata que tudo aquilo não representa mais nada. O carinho que você sente por estes, suas lembranças da filosofia e da teologia, são na verdade seus fantasmas que ficam povoando suas memórias.
A irmandade, a amizades de décadas e as histórias de vida se perderam no tempo, só você é que não percebeu. Mesmo sentindo a indiferença, confesso a vocês que não posso negar que me alegra ao ver aqueles companheiros. É uma geração que vai dando sinal que está envelhecendo e, com ela, um certo jeito de ser Igreja, de se relacionar, de celebrar, de cantar.
No fundo, acho que sublimei o conceito de clero e de presbitério , esse conceito de irmandade, transcende aquele outro mais comum: a de que irmão é alguém com quem temos afinidade, alguma forma de amor não sexual, alguém com quem podemos contar no infortúnio, na tristeza, pobreza, doença ou desconsolo. Claro que isso é também irmandade, mas o sentido profundo desse sentimento desafiador chamado amizade é proveniente de pessoas, conhecidas e que você partilhou boa parte da sua vida, elas podem estar distantes ou próximas, mas com seu carinho, nos levam ao melhor de nós. Precisamos ter a capacidade, de refazer percursos e vidas – privilégio de alguns, poucos, abençoados – hoje fui tocado pela orfandade, fiquei mais frágil e desamparado nesta época estranha em que a imagem dos que partiram realmente destoava.
Dei por mim a ouvir obsessivamente Cohen. Como se eu quisesse reencontrar um mundo que parece ter acabado. Como se conseguisse rebobinar a vida e reencontrar-me com uma certa forma de ser e de estar que estes últimos 30 anos de tanta voracidade consumiram. E ressuscitar tempos, valores, sentimentos, modelos de sociedade que sucumbiram a esta loucura cujo destino ignoramos, mas tememos!

Padre Carlos


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