domingo, 30 de abril de 2023

ARTIGO - Entre a liberdade e a solidão: o dilema de quem deixou o ministério sacerdotal. (Padre Carlos)

 


O que eu ganhei e o que eu perdi ao sair do clero

 


 

A saudade do presbitério

 

          Não. Não vou falar da falta que faz o Ministério Sacerdotal na minha vida. Não vou falar das amizades que eu achava que eram minhas e não do pároco. Não vou falar da dificuldade que é reconstruir a vida aqui fora depois de dedicar boa parte da sua vida a instituição. Também não vou falar do preconceito que os próprios leigos têm com os padres que deixaram o ministério. Não vou falar em nada disto porque as crônicas estão cheias destas constatações, os comentários a respeito destes assuntos proliferam, as análises sobrepõem-se e resta aguardar que as mudanças propostas por Francisco se confirmem e esperar que a realidade das coisas nos surpreenda.

 

         Hoje vou falar do sentimento da perda que registei com particular evidência. A exclusão do clero é evidente agora, você depois de alguns anos percebe que aqueles camaradas lhe esqueceram e você não faz mais parte nem do passado delas. Quantos anos morei com aquelas pessoas, dividir o espaço do quarto, da sala, do refeitório e hoje você constata que tudo aquilo não representa mais nada. O carinho que você sente por estes, suas lembranças da filosofia e da teologia, são na verdade seus fantasmas que ficam povoando suas memórias. A irmandade, a amizades de décadas e as histórias de vida se perderam no tempo, só você é que não percebeu.

 

         Mesmo sentindo a indiferença, confesso a vocês que não posso negar que me alegra ao ver aqueles companheiros. É uma geração que vai dando sinal que está envelhecendo e, com ela, um certo jeito de ser Igreja, de se relacionar, de celebrar, de cantar. No fundo, acho que sublimei o conceito de clero e de presbitério , esse conceito de irmandade, transcende aquele outro mais comum: a de que irmão é alguém com quem temos afinidade, alguma forma de amor não sexual, alguém com quem podemos contar no infortúnio, na tristeza, pobreza, doença ou desconsolo.

 

         Claro que isso é também irmandade, mas o sentido profundo desse sentimento desafiador chamado amizade é outro. Amizade é algo que se constrói com o tempo, com a convivência, com a partilha, com a confiança. Amizade é algo que se mantém mesmo na distância, mesmo na divergência, mesmo na mudança. Amizade é algo que se renova a cada encontro, a cada abraço, a cada palavra.

 

         Eu sei que muitos dos meus antigos colegas ainda me consideram um amigo. Eu sei que eles não me excluíram por malícia ou por indiferença. Eu sei que eles têm suas vidas ocupadas e seus problemas para resolver. Eu sei que eles também sentem saudades de mim. Mas eu também sei que eles não me procuram mais como antes. Eu também sei que eles não me convidam mais para os seus eventos. Eu também sei que eles não me incluem mais nos seus planos. Eu também sei que eles não me veem mais como um igual. E isso dói.

 

         Dói saber que eu perdi algo tão precioso quanto a amizade de quem eu tanto admirei e respeitei. Dói saber que eu deixei de fazer parte de um grupo ao qual eu dediquei tanto amor e serviço. Dói saber que eu me tornei um estranho para quem eu chamei de irmão. Eu não quero voltar ao ministério sacerdotal. Eu não quero voltar à instituição eclesiástica. Eu não quero voltar ao presbitério. Eu só quero voltar a sentir que eles ainda são meus amigos. Eu só quero voltar a ter um espaço na vida deles. Eu só quero voltar a ser lembrado e valorizado.

         Eu sei que isso pode parecer egoísmo ou ingratidão da minha parte. Eu sei que fui eu quem escolheu sair do ministério e da Igreja. Eu sei que  fui eu quem rompeu com o vínculo que me unia a eles.

         Mas eu também sei que não fiz isso por capricho ou por rebeldia. Eu também sei que não fiz isso por falta de fé ou de vocação. Eu também sei que não fiz isso por desamor ou por traição.

         Eu fiz isso por coerência. Eu fiz isso por honestidade. Eu fiz isso por liberdade.

         Eu não me arrependo da minha decisão. Eu não me sinto culpado pelo meu caminho. Eu não me lamento pela minha situação.

         Eu só me sinto triste pela minha solidão.

         Eu sei que há muitas pessoas que me amam e me apoiam aqui fora. Eu sei que há muitas pessoas que me respeitam e me admiram aqui fora. Eu sei que há muitas pessoas que me querem bem e me fazem bem aqui fora.

         Mas nenhuma delas pode substituir aqueles que eu deixei lá dentro. Nenhuma delas pode entender o que eu vivi lá dentro. Nenhuma delas pode compartilhar o que eu aprendi lá dentro.

         Por isso, eu sinto falta do presbitério. Por isso, eu sinto falta do clero. Por isso, eu sinto falta dos meus amigos.

         Eles foram uma parte importante da minha vida. Eles foram uma parte importante de mim.

         E eu espero que eles saibam disso.

 


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