Filosofia do Direito e o sistema de Justiça
Diante da crise que se estalou no Estado
brasileiro, não poderia deixar de fazer uma abordagem filosófica sobre o
comportamento dos poderes e a conjuntura que se forma neste momento. Assim, o
que mais me tem impressionado na recente crise político-institucional que tem
assolado o Brasil é, de novo, a utilização das autoridades judiciais e
judiciárias como meio privilegiado de resposta estatal.
Recordemos que, no afastamento de Dilma e de Lula,
respetivamente da presidência e do cenário político brasileiro, foi justamente
a Justiça que assumiu o papel fundamental. O poder judicial e o Ministério
Público interviram, de forma semelhante, em relação àqueles dois políticos, assumindo
um papel que, antes, em tais situações, era atribuído aos militares.
Hoje, para fazer frente ao movimento bolsonarista
que procura, mais uma vez, interromper o processo democrático, foi, de novo, o
sistema de Justiça que foi acionado: o mesmo sistema de Justiça, os mesmos
juízes e procuradores. Só que, agora, agindo, aparentemente, em sentido
contrário. Podemos, assim, constatar que, mais recentemente o MP e os tribunais
têm sido chamados a assumir uma intervenção que, mesmo quando não sendo de caráter
político, tem inevitavelmente resultados políticos determinantes.
Não é de agora - é de sempre - a vocação dos políticos
de todos os regimes quando querem endossar suas medidas mais drásticas que
desejam usar contra os seus inimigos, transferem as responsabilidades para
procuradores e juízes. Isto aconteceu na Alemanha nazista, também durante o
estalinismo, em Portugal durante o salazarismo, na Espanha de Franco, no Reino
Unido na luta contra o IRA - o caso verídico do julgamento retratado no
filme «Em nome do pai», de Jim Sheridan, ilustra bem tal processo. Geralmente
quando é convocada, a Justiça sente-se sensibilizada, fazendo assim o papel que
se espera dela.
Os erros começam, quando em nome de determinadas
prioridades da política, no nosso caso – quer o MP, quer, em consequência, os
tribunais são convocados a integrar as chamadas “força tarefa” lutas contra
certos tipos de crime: pode ser a luta contra a droga, contra a corrupção,
contra criminalidade digital, contra as redes mafiosas de tráfico de pessoas,
etc. Apesar de não percebermos, os problemas e distorções começam a surgir
quando as autoridades judiciais e judiciárias começam a passar, sem sentido
crítico e o distanciamento indispensável e ao incorporar no seu vocabulário
funcional esse tipo de expressão - «a luta contra» - faz, a gente adivinhar que
exista um “conluio” ou alinhamento
político-institucional. Acontece, porém,
que ao incorporar este tipo de linguagem acaba, muitas vezes, funcionando como argumento
para determinar as decisões que, por fim, são tomadas pela Justiça.
O que gostaríamos de abordar é a fragilidade de
equilíbrio em que, quase sempre, a Justiça se deixa colocar ante a intervenção
da mídia e dos outros poderes institucionais nas suas decisões. Queremos chamar
a atenção do leitor que, a expressão: «à justiça o que é da Justiça e à
política o que é da política» até na democracia é mais retórica do que de fato.
Os juristas – magistrados e advogados – devem, portanto, assumir que o seu papel,
mesmo quando dizem o contrário, numa democracia é tão político como nos regimes
autoritários. Nas ditaduras o alinhamento político da sua intervenção e das
suas decisões são apenas assumido de maneira mais ostensiva. Na democracia,
não: isso, geralmente, não é possível.
Como professor de filosofia, gostaria de deixar
claro que o primado do Estado de Direito e a consequente divisão dos poderes do
Estado, torna tal evidência menos notória. Por isso, exigimos sobretudo dos
magistrados, que, mesmo na democracia, adotem uma maior atenção e vigilância críticas
sobre o papel que, em cada momento, lhes é solicitadas.
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