quinta-feira, 20 de outubro de 2022

ARTIGO – O que separa a justiça da misericórdia? (Padre Carlos)

 



Miserere (ter compaixão), e Cordis (coração).








 

Outro dia conversando com uma amiga falei que se nosso Deus fosse justo em vez de misericórdia, estávamos dentro d’água. Naquela hora, me lembrei do Pe. Bruno e das aulas de latim, ele possuía uma relevância muito rica e importante, pois tinha a capacidade de transformar as vidas dos seus alunos, através da educação. Desta forma dizia: miserere (ter compaixão), e cordis (coração). "Ter compaixão do coração". Hoje entendo o que ele queria dizer. O que muita gente não percebe é que a militância política e a luta por um mundo melhor terminou nos tornando em uma pessoa cartesiana. A inflexibilidade de a nossa geração pensar e agir sempre da mesma forma nos remete para as lutas por justiça, direitos humanos, da justa distribuição dos bens, de legalidade em nível local e nas relações entre os povos, e considera o discurso sobre a misericórdia como diferente do discurso da justiça e de qualquer modo menos importante.

         A diferença do militante para o cristão termina sendo a mesma que separa a justiça da misericórdia. A justiça exige que se dê a cada um aquilo que lhe é devido, isto é, se você tem direito é seu; já a misericórdia, porém, pede que se dê ao outro também aquilo que não lhe é devido. Esta vai além do direito, ela olha se você esta precisando, não se tem direito. A misericórdia pede o perdão pelo dano recebido e pela injustiça sofrida.   A justiça sozinha não basta para entendermos as necessidades dos mais pobres; precisa-se também da misericórdia. É claro que precisamos de códigos e leis de um sistema de justiça para que a misericórdia possa se basear na justiça, que é o primeiro degrau do amor.

Na nossa história, a revelação de um Deus que é Pai e misericordioso vai se dando de forma lenta e progressiva e se desenvolve junto com o crescimento cultural dos povos e da sua humanidade.

As imagens de Deus misericordioso, no Novo Testamento, levam vantagem sobre a imagem de um Deus de justiça, aquele que julga e puni ligado à primazia da lei apresentado no Velho Testamento. Deus é um Pai que nos ama gratuita e indistintamente. Desta forma, podemos afirmar que a misericórdia não é contrária à justiça, mas exprime o comportamento de Deus para os pobres oprimidos e pecadores. A observância da lei é necessária, mas é preciso superar uma visão meramente legalista. A misericórdia não é uma espécie de ‘bondade’, alternativa à justiça. Exprime, ao contrário, a necessidade do encontro entre réu e vítima, que vai além do legalismo e oferece a ocasião para o réu admitir e superar o mal feito e para a vítima superar o mal recebido, perdoando. A Igreja não pode nem deve substituir o Estado, mas ela não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça. Todos são chamados a nos preocupar com a construção de um mundo melhor.

O amor verdadeiro a Deus passa pelo compromisso com a justiça social e com a promoção do pobre, que sofre injustiça e é marginalizado. O pobre preciso da nossa misericórdia para com ele. A opção preferencial pelos pobres faz com que nos assemelhemos ao Pai misericordioso e sejamos sinal e fermento para encontrar a justiça e o amor nas relações entre as pessoas. Precisamos ter coragem de dar pequenos passos para a construção da civilização do amor, como dizia o Papa Paulo VI. É o próprio Jesus quem nos ensinou que tudo o que fizermos ao pobre, estamos fazendo a Ele mesmo.

 


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