terça-feira, 6 de agosto de 2019

ARTIGO | “Vigiar e Punir” (Padre Carlos)



“Vigiar e Punir”




          Nem sempre é fácil destrinçar a linha, por vezes muito ténue, que separa a civilização da barbárie. A própria história da humanidade, nos revela múltiplas formas de barbárie. Há, porém, ocasiões em que essa demarcação se pode estabelecer com absoluta nitidez.
Quando assim é, tudo se torna simultaneamente mais simples e mais dramático. Podemos afirmar que esta fronteira pode ser bem representada com a situação em que se encontram os nossos presídios e a população carcerária.


            Com isto, queremos chamar a atenção da comunidade sobre esta questão e lembrar a sociedade, que estas pessoas infelizmente não fazem parte das políticas públicas de segurança e que os presídios são a válvula de escape para quando todo o resto falhar.


            O filósofo francês Michel Foucault descreve em sua obra clássica “Vigiar e Punir” como os Estados europeus foram, no século XIX, aprimorando seu direito de punir os que decidiam viver às margens da lei. Foucault nos mostra que os europeus foram fazendo o suplício desaparecer e definindo o caráter essencialmente corretivo da pena.




Descrição
Vigiar e punir: nascimento da prisão é um livro do filósofo francês Michel Foucault, publicado originalmente em 1975 e tido como uma obra que alterou o modo de pensar e fazer política social no mundo ocidental. Só foi publicado no Brasil traduzido em 1987.


            Eles modularam os castigos de acordo com as culpas. As punições passaram a ser menos físicas e mais mentais. Foucault diz ainda que se passou a ter uma “discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação”. Mas, isso foi lá na Europa. Aqui no Brasil não aconteceu nada disso.


            Importamos o modelo da masmorra medieval e com ele seguimos até hoje. Nós não temos presídios modernos para onde os transgressores da lei possam ser levados para purgarem suas culpas e poderem voltar ao convívio da sociedade. O que temos são esses deploráveis centros de ajuntamento de indesejáveis. Para lá mandamos aqueles que não queremos ao nosso lado. Enviamos com a esperança que, de lá, nunca mais saiam. E se tiverem que sair que, pelo menos, estejam mortos.


            Mas, criamos locais para que os transgressores bem-nascidos e a elite política e econômica possam ter alguma punição sem que sejam despojados de suas condições econômicas, sociais e políticas. Cuidamos bem da elite que vai parar atrás das grades, sempre com a esperança que ela possa retornar ao convício social como se nada tivesse acontecido.


            Já com os “Josés” e as “Marias” de sempre a coisa é diferente. Não queremos ressocializar ninguém. Para que mesmo vamos dar mais uma chance para aqueles que não merecem ter oportunidades, pois nasceram pobres e pobres devem morrer.


            Assim, nosso modelo de masmorra medieval nos serve bem, pois lá se pratica toda sorte de castigos corporais e mentais. Lá se aniquila aos poucos, e com requintes de crueldades, aqueles que nos achamos que, afinal de contas, merecem mesmo. O fato que demostra de forma claro o que estou falando, é só olharmos a nossa volta, somos de alguma forma responsável pelos 62 presos mortos no massacre no Centro de Recuperação Regional de Altamira, no Pará, na segunda-feira (29/07/2019), 26, ou 41%, ainda aguardavam julgamento, segundo informações divulgadas pelo sistema penitenciário do Estado. Entre os 58 detentos que perderam a vida no presídio, 25 eram provisórios, 26 condenados, e apenas sete foram julgados e respondiam pela pena.
            Quatro vítimas morreram durante a transferência, na quarta-feira (31/08/2019), para outras cadeias do Estado. Destes, um era provisório, um condenado e os demais já haviam sido condenados.
Quem não se lembra da chacina de 56 detentos no maior presídio do Amazonas e o que o poder público fez para tentar retomar o controle das cadeias.


            Como Padre e coordenador da Pastoral Carcerária, tive a oportunidade de visitar vários presídios e constatar que existe na verdade uma reprodução de um modelo que é nacional. Vimos que a questão carcerária não é parte das políticas públicas de segurança e que os presídios são a válvula de escape para quando todo o resto falhar.


            Os governos parecem nos dizer que não temos que nos preocupar se as políticas públicas nas áreas de educação, saúde e moradia falharem, pois sempre teremos as masmorras para atirar os que o Estado não conseguir atingir com seu enorme braço.


            Qualquer pessoa que conhece a realidade sabe que o sistema prisional brasileiro está falido e desestruturado. Segundo dados oficiais, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Dos presos, mais da metade é constituída por jovens menores de 30 anos, em sua maioria pobre e negra e com baixo grau de instrução escolar. Quase a metade está em situação provisória, constituída de pessoas que ainda não foram julgadas ou nem sequer ouvidas e indiciadas.


            Com isso tudo, não estou querendo dizer que devemos ser benevolentes para com os marginais vindos das camadas mais baixas. Também não acho que piorar o que já não presta é a solução. E, por favor, não me falem em pena de morte.


            Pois, num país onde ainda se morre por causa da picada de um mosquito e de disenteria e diarreia, por falta de esgotos, não é preciso mais utilizar esse expediente medieval, de um tempo em que o Estado ainda não tinha aperfeiçoado suas maneiras de punir.


            No decorrer dos séculos, homens e mulheres sinceros têm lutado para diminuir a injustiça e aumentar a justiça. Assim os Movimentos de Direitos Humanos vem buscando as reforma necessárias com o objetivo de agilizar o nosso sistema. Processos jurídicos e sistemas judiciais têm sido revisados e reorganizados. Ainda assim, a injustiça continua!


            Não podemos esquecer que antes de ser juiz, Deus é telespectador das nossas ações. Nenhuma atitude deixará de ser julgada. Para Ele, não existe justiça cega.


Padre Carlos





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