segunda-feira, 11 de setembro de 2023

ARTIGO - O amigo dos tempos de chumbo. (Padre Carlos)

 

Você me esqueceu!

 


O tom era mais que o de uma queixa. De acusação:

— Você não se lembra mais de mim!

Eu não me lembrava daquele homem, no todo. Mas, em parte. Não lhe recordava o nome, nem tinha a menor ideia de quando o vi pela primeira ou pela última vez. Onde o vira. Seus olhos eram, porém, meus conhecidos. Seu olhar e sua voz, ambos amargos.

Continuava a acusar-me de tê-lo esquecido. A ele, que relembrava dos nomes dos meus companheiros do partido, da faculdade e do movimento estudantil, lembrava até do barzinho que frequentávamos e fazíamos a revolução em torno da mesa com algumas cervejas.

Eu gostaria de saber explicar-lhe que, na vida, basta haver duas pessoas para que uma esqueça a outra. E, na vida, há tanta gente. Uma explicação tão difícil que só um bêbedo seria capaz de entendê-la. Porque os bêbedos são mais generosos e aquiescentes. Aquele homem, porém, estava lúcido. E sua lucidez era, convencionalmente, a certa. Contra mim, a razão de alguém que pretendia saber por que eu o esqueci, se ele não me esqueceu? Quando eu é que devia perguntar-lhe, se possível, segurando-o pelas lapelas, por que não me esqueceu, se eu o esqueci?

Se ele fosse um bêbedo, compreenderia. A humanidade apegou-se tanto aos convencionalismos que, hoje em dia, é muito difícil falar aos homens que não estão bêbedos. No entanto, o homem é livre e pode optar por ser autêntico. Mas não. Prefere aprisionar-se, acomodar-se cada vez mais, à significação exata e formal das palavras e dos gestos.

Afinal, deu-se a conhecer. Chamava-se Francisco e era um amigo do movimento estudantil. Pedi-lhe desculpas. Abracei-o. Fui-me embora. Mas, se fosse possível convencê-lo, teria ficado para dizer-lhe, com todas as palavras nos lugares certos, que a falha não é, jamais, de quem esquece o amigo que caminhou na luta. E, sim, de quem dele ainda se lembra. O natural é que o gato seja manhoso; a águia, nobre; e o homem, esquecido. Não me entenderia. Para ele, tanto quanto a águia devesse ser nobre, o homem teria obrigação de ser perfeito. Então, de nada adiantaria eu lhe ensinar que os amigos dos anos de chumbo, desde que se separam, serão irreconciliáveis depois quando, conquistado a democracia, outra coisa não existe mais a não ser o homem envelhecido. Seria possível, sim, preservar o amigo de militância se possível fosse preservar e manter a luta. O ar e a luz de suas manhãs. As cores do casario da faculdade . Os cânticos os plafetos e bandeiras para levantar. A beleza, a coragem e as esperanças daquele jovem. . 

 


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