Você me esqueceu!
O tom era mais que
o de uma queixa. De acusação:
— Você não se
lembra mais de mim!
Eu não me lembrava
daquele homem, no todo. Mas, em parte. Não lhe recordava o nome, nem tinha a
menor ideia de quando o vi pela primeira ou pela última vez. Onde o vira. Seus
olhos eram, porém, meus conhecidos. Seu olhar e sua voz, ambos amargos.
Continuava a
acusar-me de tê-lo esquecido. A ele, que relembrava dos nomes dos meus
companheiros do partido, da faculdade e do movimento estudantil, lembrava até
do barzinho que frequentávamos e fazíamos a revolução em torno da mesa com
algumas cervejas.
Eu gostaria de
saber explicar-lhe que, na vida, basta haver duas pessoas para que uma esqueça
a outra. E, na vida, há tanta gente. Uma explicação tão difícil que só um
bêbedo seria capaz de entendê-la. Porque os bêbedos são mais generosos e
aquiescentes. Aquele homem, porém, estava lúcido. E sua lucidez era,
convencionalmente, a certa. Contra mim, a razão de alguém que pretendia saber
por que eu o esqueci, se ele não me esqueceu? Quando eu é que devia
perguntar-lhe, se possível, segurando-o pelas lapelas, por que não me esqueceu,
se eu o esqueci?
Se ele fosse um
bêbedo, compreenderia. A humanidade apegou-se tanto aos convencionalismos que,
hoje em dia, é muito difícil falar aos homens que não estão bêbedos. No
entanto, o homem é livre e pode optar por ser autêntico. Mas não. Prefere
aprisionar-se, acomodar-se cada vez mais, à significação exata e formal das
palavras e dos gestos.
Afinal, deu-se a
conhecer. Chamava-se Francisco e era um amigo do movimento estudantil. Pedi-lhe
desculpas. Abracei-o. Fui-me embora. Mas, se fosse possível convencê-lo, teria
ficado para dizer-lhe, com todas as palavras nos lugares certos, que a falha
não é, jamais, de quem esquece o amigo que caminhou na luta. E, sim, de quem
dele ainda se lembra. O natural é que o gato seja manhoso; a águia, nobre; e o
homem, esquecido. Não me entenderia. Para ele, tanto quanto a águia devesse ser
nobre, o homem teria obrigação de ser perfeito. Então, de nada adiantaria eu
lhe ensinar que os amigos dos anos de chumbo, desde que se separam, serão
irreconciliáveis depois quando, conquistado a democracia, outra coisa não
existe mais a não ser o homem envelhecido. Seria possível, sim, preservar o
amigo de militância se possível fosse preservar e manter a luta. O ar e a luz
de suas manhãs. As cores do casario da faculdade . Os cânticos os plafetos e
bandeiras para levantar. A beleza, a coragem e as esperanças daquele jovem. .
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